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Crônicas

04/04/2022

Experimentos do tempo

Dias atrás, eu vi a foto de uma mulher que conheci há uns bons anos. Já era mais velha do que eu quando a conheci, mas nunca havia reparado na distância disfarçada de idade que nos separava. Não consegui evitar o espanto com o quanto tinha envelhecido. As rugas do rosto, as olheiras acentuadas, a pele de quem já superou quentes verões, e a falha na relação com o protetor solar. Semblante carregado pelo tempo e com as marcas que esse implacável algoz distribui sem dó ou piedade por todos os cantos por onde passa.

Essa coisa de observar o envelhecimento das pessoas já vinha me atormentando há alguns dias. Acredito que foi isso que me fez reparar tanto no rosto dessa mulher. Porque o envelhecimento alheio me atormenta. Não gosto de ver os outros mostrando que não são mais de hoje. Os traços pesados e incorrigíveis demonstram que falhamos no acordo com Deus de ficarmos para sempre iguais, imunes aos caprichos dos anos, à vida que passa sem pedir licença ou perdão.

O que realmente me incomodou na velhice precoce daquela agora senhora foi justamente ver a minha própria refletida. Os cabelos aqui são bem menos que os esvoaçantes divididos ao meio da juventude. Os pés de galinhas, antes tímidos, já trouxeram parentes e amigos para dentro de casa. Alguém mais distraído poderia apostar que minhas olheiras fazem parte de alguma maquiagem para festa de Dia das Bruxas.

Mas um detalhe me encasqueta nisso tudo. O não sentir na alma, nos sonhos que ainda surgem tal qual na adolescência. É como se, na vontade de escrever minha história, o tempo não passasse de meros números amontoados. Claro que os cansaços são mais comuns e vêm com mais facilidade do que eu gostaria. Que a escada do trabalho humilha em toda tentativa. Que as ressacas parecem atropelamentos de um caminhão carregado de lenha, e a barriga não dá nenhum sinal de que possa ir embora amigavelmente. Mas o que a fabricação de colágeno escassa não impede é o sentimento de que ainda há uma vida inteira pela frente, não importa o quanto dela já tenha ficado para trás.

Minhas rugas, como as da mulher da foto, são apenas certezas de que chegamos, cada um ao seu jeito, em um lugar onde tantos não conseguiram, e de onde ainda há muito por avançar. Traços que agora fazem parte do que nos tornamos, cada linha contando uma história, e nós a lembrá-las, uma a uma. Sentindo saudades dos grandes momentos ou mais fortes com as lições que os erros e as dores trouxeram. Nós, experimentos do tempo, cara aberta às sortes da vida.

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