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Crônicas
09/02/2022
As estripulias dos filhos da dona Lúcia
Um dia, eu pedi os documentos dela emprestados e não expliquei o porquê. Quando parabenizei por ser a mais nova empresária do país, ela me xingou, e eu falei que parasse de reclamar, que poderia ser pior. Ela poderia estar levando cigarro e bolo para mim na cadeia.
Dias atrás, assistindo a um jogo do Grêmio no estádio, lembrava com um amigo dos tempos de Olímpico, e algumas histórias que vivi com meu irmão lá. A primeira vez que levei, a final de Libertadores em que coloquei um guri de 15 anos no meio de bomba e espadada da polícia, quando ele se arrebentou joelhos e mãos caindo na avalanche. E me dei conta que se ela soubesse da metade das coisas que aprontamos, já teria até empacotado de tanta preocupação. E também percebi que, toda vez que saímos por aquela porta para sermos felizes e aprendermos com a vida, a deixamos com o coração aflito na mão, rezando para que Deus não nos perdesse de vista.
Quando morei fora por um tempo, eu fui o pior filho do mundo. Durante um ano, eu devo ter feito no máximo umas 5 chamadas de vídeo. Ela pode ter pensado que eu estava sendo ingrato, mas o que nunca contei é que todo esse egoísmo foi por proteção. Porque toda vez que eu via o rosto da minha mãe na tela, eu me perguntava o que eu estava fazendo da minha vida longe do melhor abraço do mundo. Por isso, era melhor deixar os dias passarem sem muito contato, até o reencontro. Afinal, eu precisava aprender algumas coisas que só o exterior me trariam.
E foi lá, há um oceano de casa, que o universo me deu o recado que eu não podia me dar ao luxo de abrir mão da presença da minha mãe. Ele veio na figura de um colega de trabalho húngaro, forte como um touro, que só fazia falar da filha e da família. Numa vez em que me perguntou como eu tinha ido parar na Irlanda, e ouvir que não era para fugir da guerra, fome ou qualquer outra outra tragédia, me disse para não fazer aquilo. Para nunca ficar longe da minha mãe. Na semana seguinte, ele não foi trabalhar no turno que dividíamos lavando louças. Fora chamado às pressas para o país dele. A mãe tinha sofrido um ataque súbito do coração, e ele precisou ir para o enterro.
Foi quando eu decidi voltar. Para pedir documentos sem nem explicar o motivo, para preocupar ela arrastando o outro filho para aventuras, para ver a mais velha dar o melhor presente em forma de neto. Para nunca mais abrir mão por tanto tempo do abraço mais sincero que já vivi. Em qualquer lugar do mundo.
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