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Crônicas
23/09/2021
Meu testamento
Antes de qualquer outra coisa, me deixem acalmar familiares, amigos e a quem interessa a minha continuidade por aqui. Esta crônica não é uma despedida. Minhas palavras tentam sempre melhorar o mundo, e não seria com elas que eu estragaria a vida dos que amo. Ademais, eu tenho tantos livros esperando por mim nas prateleiras e em cima dos móveis lá de casa que jamais pensaria em deixá-los órfãos por escolha própria.
Mas andamos enxergando a morte com uma espantosa facilidade que resolvi me precaver. Eu mesmo recentemente tive uma conversa direta com Deus, quando resolvemos que podíamos, eu e Ele, fazer muito mais bem aqui embaixo do que numa prematura subida, que me sinto confortável em esclarecer certos pontos. Não quero deixar todas as minhas coisas sem os destinatários que merecem. Meu testamento precisa ficar registrado caso a morte, soturna, resolva me distrair com a cerveja gelada e o bom papo que sabe que eu aceitaria. Seja logo ou numa velhice que espero me encontrar daqui bons e bem vividos anos.
Vou começar pelo que menos interessa. Qualquer bem que tenha em meu nome que seja distribuído entre os meus. Nunca me importei muito com o que se paga com dinheiro, mas sei que ajuda um bocado. Portanto, que minha família faça bom uso e pague suas dívidas e viaje para onde o que cair na conta permitir.
Vencida a burocracia, distribuo o que realmente conta. E começo em casa. A biblioteca que transborda de gente que me acompanhou em momentos de solidão escolhida ou forçada eu deixo para a minha irmã. Além de já ter me pedido, sei que todos estariam em ótimas mãos. Afinal, uma professora jamais trataria mal meus Vinicius e minhas Svetlanas. Só peço que ela os transforme em um espaço público, para todos que queiram perder-se nas mesmas páginas que um dia eu me encontrei. O meu objetivo de uma biblioteca itinerante e acessível, que ainda hei de abrir, é a contrapartida que espero por centenas de títulos que formaram e ainda formam um Egui cada vez mais errante, mas com argumentos sólidos para errar sem culpa.
Todas as minhas camisas do Grêmio, por favor, destinem ao meu irmão. Talvez ele não as use, assim como eu mesmo não o faço. São sempre as mesmas, inúteis amuletos, que acabo por vestir. E ele também certamente tenha as suas preferências. Mas a herança em três cores que já nos uniram vezes incontáveis, como pano de fundo para conversas quaisquer, somente ele irá entender. E cuidar, como sempre cuidamos um do outro, aonde estivemos.
Os sonhos que não consegui realizar eu entrego para minha mãe. Ela viveu com intensidade única cada um dos que conquistei que saberá perfeitamente como embalar os que ficaram pelo caminho. Caso a vida siga seu rumo natural e a minha velha não esteja mais quando esse testamento for lido, quero que os mesmos sonhos pendentes fiquem com meu sobrinho. Não vou jamais me meter nos dele, mas quem sabe se interesse pelos do velho tio, e encontre graça e desafio para vivê-los entre os seus.
Por fim, minha verdadeira riqueza, as palavras que me escolheram por toda uma vida peço encarecidamente que fiquem para o mundo. Aos corações que respiram o bem, para quem acorda manhã a manhã para entregá-lo aos outros. As linhas de amor, que toquem quem nunca conheceu os amores que tive a sorte de viver e morrer, para ver nascendo novamente. As de esperança, que cheguem nos que pensam que os dias não tem mais jeito, que não vai passar. Tem, vai. E a vida estará lá, esperando sedenta para mais tanto.
Façam, os que amo e quem não pude sorrir a graça de conhecer, bom proveito de tudo que deixo. Talvez seja pouco, mas bastou para me fazer bestialmente feliz. E para onde vou não precisarei de nada disso. Seguirei com as pessoas que chegaram e partiram. Com os sentimentos que cada uma plantou em mim. Quando chegar a hora, irei sorrindo. Tudo que importa viveu e morreu comigo.
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